Efeitos de um golpe: 60 anos depois, reflexões sobre a economia

*Paulo Kliass


Passados 60 anos do golpe de abril de 1964, o que podemos falar a respeito de alguns dos aspectos mais relevantes da política econômica da época da ditadura militar? Muito se comenta sobre os anos do chamado “milagre”, na primeira metade da década de 1970, quando as taxas de crescimento do PIB realmente foram bastante expressivas. Mas o problema é que existem outras variáveis, tão ou mais importantes, que evidenciaram um lado obscuro de tal modelo adotado à época. Afinal, são desse período também algumas frases que entraram para o triste anedotário dos dirigentes à época, como o Presidente Emílio Garrastazu Médici (“A economia vai bem, mas o povo vai mal”) e seu Ministro da Fazenda, Delfim Neto (“Primeiro é necessário fazer o bolo crescer para depois distribuir”).

Antes disso, porém, talvez seja interessante fazer um breve retrospecto do intenso movimento golpista que levou à destituição do governo democraticamente constituído de João Goulart. Esse processo coroou um período marcado por sucessivas tentativas de promoção de ruptura da ordem constitucional. As elites conservadoras das classes dominantes e parcela da alta oficialidade das Forças Armadas vinham buscando impedir a continuidade de governos portadores de programas com algum conteúdo progressista e desenvolvimentista.

Assim foi feito com Getúlio Vargas em seu retorno nas eleições presidenciais de 1950. Ele foi eleito com quase a metade dos votos válidos pela legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O partido mais à direita, União Democrática Nacional (UDN), passou a fazer uma oposição enraivecida contra o novo governo, criando um clima de radicalização e ingovernabilidade, que culminou no suicídio político de Vargas em 1954.

Na sequência, em 1955 a população elege Juscelino Kubitschek para o próximo mandato, em nova derrota para a UDN. O governo mantém os traços desenvolvimentistas de Getúlio, mas alguns elementos de crise econômica terminaram por favorecer a eleição de um candidato de perfil conservador, Jânio Quadros, como seu sucessor em 1960. Ocorre que o sistema eleitoral permitia a composição da chapa de presidente com o vice de outra lista, de modo que foi eleito para a vice-presidência o trabalhista João Goulart, o Jango. Jânio buscou concentrar poderes e ameaçou o conjunto do sistema político com a chantagem de uma renúncia no primeiro ano de governo. O golpe não surtiu efeito, pois a renúncia foi aceita pelo legislativo como um ato unilateral de vontade.

As forças conservadoras pressionaram para impedir a posse do vice, que estava em viagem à China. A solução política encontrada foi um compromisso de adoção de um sistema parlamentarista de forma casuística. Apesar do claro golpe contra Jango, a realização de um plebiscito, posteriormente em 1962, restituiu o regime presidencialista por meio do apoio da maioria da população. Ocorre que a campanha pública pela destituição do governo continuava a pleno vapor. Assim, o golpe se revela definitivo e vitorioso logo depois, em 1º de abril de 1964.

1964 e a economia 

Ao longo do período da ditadura militar (1964-1985), os aspectos do modelo econômico adotado contribuíram de forma significativa para as mudanças observadas na sociedade brasileira. Alguns dos principais pontos críticos da política econômica desenvolvida durante o regime militar foram: i) endividamento externo; ii) processo inflacionário; iii) aumento das desigualdades.

Dívida externa

O processo de aprofundamento da dependência da economia e da sociedade brasileiras aos países mais desenvolvidos e ao universo do sistema financeiro internacional encontra na dívida externa um de seus exemplos mais marcantes.

Em 1964, logo depois do golpe militar, o País registrava um estoque de dívida externa equivalente a US$ 3 bilhões. Ao longo da primeira década, o estímulo à busca de recursos de empréstimo em moeda estrangeira por empresas privadas e pelo próprio setor público faz com que o total do endividamento seja multiplicado por quase 7 vezes, atingindo US$ 20 bilhões em 1974. As mudanças no cenário econômico internacional a partir de meados da década de 1970 e sua continuidade na década seguinte não alteraram a estratégia adotada pelos governos. Assim, em 1984, o total do estoque da dívida externa brasileira alcançou a marca de US$ 102 bilhões.

Esse processo de aumento do endividamento em moeda internacional acaba por provocar significativos impactos no desequilíbrio das contas externas. Assim, por exemplo, em 1982 o Brasil é obrigado a recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para conseguir cumprir com as obrigações da dívida em dólares norte-americanos. E as condicionalidades que surgem a partir de tais negociações passam a envolver a exigência de medidas de austeridade fiscal, de liberalização comercial e de privatização.

 Inflação

A situação do crescimento dos preços às vésperas do golpe foi um dos fatores bastante utilizados pelas forças conservadoras para apoiar a destituição do governo legitimamente eleito e a substituição autoritária por uma junta de militares. O Índice Geral de Preços (IGP) apurou 92% para os 12 meses de 1964. Sob o novo regime, tem início um longo processo que a literatura qualificou de “modernização conservadora”. Foram criadas instituições na área da política monetária e creditícia, como o Banco Central do Brasil (BCB) e o Conselho Monetário Nacional (CMN). Além disso, o governo promoveu uma reforma monetária de baixa intensidade, substituindo o antigo “cruzeiro” pelo “cruzeiro novo”, acompanhado da eliminação de três zeros na nova moeda.

A forte opção pelo arrocho monetário e pela austeridade fiscal provocaram uma redução do crescimento das atividades em 1964 e 1965, com uma redução na taxa da inflação. Esse movimento permitiu que o crescimento dos preços ficasse relativamente sob controle, até meados da década de 1970. A partir de 1974, a inflação volta com taxas mais elevadas e o choque do petróleo em 1979 a coloca em patamares ainda mais altos. Os dois últimos anos do período analisado apresentam o crescimento de preços com valores acima de 200% ao ano.

Concentração de renda e desigualdades socioeconômicas

Outro aspecto fundamental do modelo econômico levado em frente durante a ditadura militar refere-se ao processo brutal de concentração de renda e do aumento das desigualdades de toda ordem.

O golpe tinha por base a articulação de diversos setores do capital nacional e estrangeiro contra a orientação desenvolvimentista do governo de Jango e de sua base social, que contava com apoio das forças de esquerda e dos sindicatos. Além da repressão política às lideranças simpáticas ao governo deposto pelas armas, o novo governo também orientou suas baterias para a desestruturação das políticas públicas de apoio aos trabalhadores, aos camponeses e à maioria da população. Um dos aspectos mais significativos foi a reversão da política de valorização do salário mínimo que vinha sendo levada a cabo desde a volta de Getúlio Vargas em 1950.

Além disso, a natureza concentradora de renda do modelo pode ser confirmada pela comparação da evolução real do salário mínimo e do PIB per capita. A economia continuava a crescer a taxas elevadas, mas a porção dos salários no bolo era cada vez mais reduzida. O gráfico abaixo torna bastante evidente a diferença de comportamento entre essas duas variáveis.

Outra medida que permite identificar o processo de concentração de renda e aumento da desigualdade social e econômica refere-se ao Índice de Gini. Como se sabe, a metodologia utilizada para a apuração implica que o índice varie entre 0 e 1. Quanto mais próximo de zero, menor a concentração; e quanto mais próximo de um, maior a desigualdade. O gráfico abaixo exibe a elevação do indicador ao longo do período aqui analisado.

Assim, o que se verificou foi um aprofundamento das dificuldades pelas quais  passava a maioria da população, ainda que a economia crescesse a taxas elevadas durante a primeira metade da década de 1970. Além disso, o crescimento da dívida externa provocou a redução do grau de soberania nacional no que se refere à política macroeconômica. O esforço nacional realizado para gerar divisas com o intuito de honrar os compromissos do endividamento externo terminou por comprometer a capacidade de construir um caminho nacional autônomo rumo ao desenvolvimento econômico e social.

Se nesse marco de 60 anos do golpe, a sociedade reflete sobre os aspectos das liberdades democráticas afetadas pelo golpe, esse artigo busca contribuir com reflexões sobre como o cenário econômico fez parte de uma política restritiva de direitos. Hoje é possível compreender como algumas medidas tomadas à época fizeram com que problemas como a profunda desigualdade social brasileira fossem agudizados por uma visão concentradora de renda e de riqueza. 


*Paulo Kliass é doutor em Economia. EPPGG desde 1997, trabalhou em diversos órgãos da administração pública federal: Planejamento, Previdência, Ciência e Tecnologia, ANVISA, Câmara dos Deputados e Casa Civil. Desde abril de 2020 está aposentado.